sábado, 6 de junho de 2009

O SISTEMA ACUSATÓRIO*

Sobre esse tema, escreve Eugênio Pacelli de Oliveira, em seu Curso de Processo Penal, 11a edição, Lumen&Juris, 2009:

"De modo geral, a doutrina costuma separar o sistema processual inquisitório do modelo acusatório pela titularidade atribuída ao órgão da acusação:

Inquisitorial seria o sistema em que as funções de acusação e de julgamento estariam reunidas em uma só pessoa (ou órgão), enquanto o acusatório seria aquele em que tais papéis estariam reservados a pessoas (ou órgãos) distintos.

A par disso, outras características do modelo inquisitório, diante de sua inteira superação no tempo, ao menos em nosso ordenamento jurídico, não oferecem maior interesse, caso do processo verbal e em segredo, sem contraditório e sem direito de defesa, no qual o acusado era tratado como objeto do processo.

As principais características dos aludidos modelos processuais seriam as seguintes:

a) No sistema acusatório, além de se atribuir a órgãos diferentes as funções de acusação (e investigação) e de julgamento, o processo, rigorosamente falando, somente teria início com o oferecimento da acusação;

b) já no sistema inquisitório, como o juiz atua também na fase de investigação, o processo se iniciaria com a notitia criminis, seguindo-se a investigação, acusação e julgamento.

No século XIX, e mais precisamente no ano de 1808, com o surgimento do famoso Code d'instruction criminelle francês, outro modelo processual com características bem definidas se apresentada á prática judiciária.

Nesse sistema processual, a jurisdição também se iniciaria na fase de investigação, e sob a presidência de um magistrado - os juizados de instrução - tal como ocorre no sistema inquisitório. No entanto, a acusação criminal ficava a cargo de outro órgão (o Ministério Público) que não o juiz, característica já essencial do sistema acusatório. Exatamente por isso, denominou-se referido sistema de sistema misto, com traços essenciais dos modelos inquisitórios e acusatórios.

Obra indispensável sobre o tema, colhe-se em Mauro Fonseca ANDRADE (Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008), rica e exaustiva pesquisa histórica acerca dos sistemas processuais penais, cujo trabalho, de largos méritos, presta-se também a desfazer não poucos equívocos e confusões conceituais sobre a matéria.

Sob tais distinções, o nosso processo é mesmo acusatório.

Entretanto, a questão não é tão simples. Há realmente algumas dificuldades na estruturação de um modelo efetivamente acusatório.

A mais importante delas se encontrava na antiga redação do art. 384, CPP, em que se previa a possibilidade de mutatio libelli (modificação da acusação)pelo próprio juiz, nas hipóteses em que igual ou inferior a sanção do tipo penal vislumbrado após a instrução - trecho confuso mudar para nas hipóteses em que a sanção fosse igual ou inferior àquela prevista na denúncia.

Lamentavelmente, nossos tribunais fizeram ouvidos moucos e olhares poucos sobre a medida, só recentemente objeto de modificação legislativa. Essa veio a lume no texto da Lei 11.719, de 20 de junho de 2008, vigente desde o dia 20 de agosto do mesmo ano, pondo fim a esse descalabro, e permitindo apenas ao Ministério Público o aditamento a denúncia (ou queixa, subsidiária) ou a nova mutatio libelli do mesmo art. 384 do CPP.

Nada obstante, pequenos, mas importantes, reparos foram feitos ao longo desses anos, em relação à construção de um modelo prioritariamente acusatório de processo penal. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo e acertadamente, já teve oportunidade de decidir pela impossibilidade de o juiz poder requisitar de ofício novas diligências probatórias, quando o Ministério Público se manifestar pelo arquivamento do inquérito. A violação ao sistema acusatório, na hipótese, seria e era patente (HC n° 82.507/SE, Rel. Sepúlveda Pertence. Primeira Tura. DJ 19.12.2002, p. 92).

Também no campo da distribuição dos ônus da prova há uma ampla liberdade de iniciativa probatória conferida ao juiz, frequentemente legitimada pelo decantado princípio da verdade real. Ora, além do fato de não existir nenhuma verdade judicial que não seja uma verdade processual, tal princípio, na realidade, na extensão que se lhe dá, pode ser - e muitas vezes foi e ainda é - manipulado para justificar a substituição do Ministério Público pelo juiz, no que se refere ao ônus probatório que se reserva àquele.

Nesse ponto, pensamos que somente uma leitura constitucional do processo penal poderá afastar ou diminuir tais inconvenientes, com a afirmação do princípio do juiz natural e de sua indispensável imparcialidade.

Com efeito, a igualdade das partes somente será alcançada quando não se permitir mais ao juiz uma atuação substitutiva da função ministerial, não só no que respeita ao oferecimento da acusação, mas também no que se refere ao ônus processual de demonstrar a veracidade das imputações feitas ao acusado.

A iniciativa probatória do juiz deve limitar-se, então, ao esclarecimento de questões ou pontos duvidosos sobre o material já trazido pelas partes, nos termos da nova redação do art. 156, II, do CPP, trazida pela Lei 11.690/2008.

Obviamente não estamos sustentando o aprisionamento do juiz na investigação dos fatos, o que, à evidência, seria completo - rematado é rebuscado retrocesso. Mas vedar a atuação judicial em substituição ao Ministério Público não é oura coisa senão afirmar um modelo acusatório igualitário, ou tendente à realização do efetivo equilíbrio de forças na relação processual penal.

Do mesmo modo, não se pode deixar de criticar e, mais que isso, de rejeitar validade à novidade trazida com a Lei 11.690/08, que, alterando o disposto no art. 156 do Código de Processo Penal, a produção de provas consideradas urgentes e relevantes. Ora, ão cabe ao juiz tutelar a qualidade da investigação, sobretudo porque sobre ela, ressalvadas determinadas provas urgentes, não se exercerá jurisdição.

O conhecimento judicial acerca do material probatório deve ser reservado à fase de prolação da sentença, quando se estará no exercício de função tipicamente jurisdicional. Antes, a coleta de material probatório, ou de convencimento, deve interessar àquele responsável pelo ajuizamento ou não da ação penal, jamais àquele que a julgará. Violação patente - e recente - do sistema acusatório.

Isso não impedirá, por certo - daí não se aceitar também o aprisionamento ou a limitação indevida da função jurisdicional - que o Juiz Criminal investigue, quanto for necessário e possível, eventuais provas da inocência do acusado.

Diferença de tratamento? Sem dúvida, mas plenamente justificada: não se pode, sob quaisquer fundamentos, vincular a decisão judicial à qualidade de atuação das partes (acusação e defesa), particularmente quando se tratar - e quando puder ser antevista - a possibilidade de produção de prova em favor do réu, mesmo não requerida ou vislumbrada pelo defensor.

Nessa ordem de idéias, o interrogatório do réu não poderia deixar de ser também redimensionado, como o foi, na Lei n. 10.792/03, para se constituir, efetivamente, em exclusivo meio de defesa, e não de prova, reservando-se ao acusado o juízo de conveniência e oportunidade quanto à sua participação ou não no referido ato processual.

De seu silêncio e de seu não-comparecimento não poderão advir, obviamente, quaisquer prejuízos, exatamente por força da norma constitucional (art. 5°, LXIII, CF) e, agora (Lei n. 10.792/03, que alterou o disposto no art. 186, CPP e, implicitamente, revogou o art. 198, CPP).

Não há, pois, como aderir à recente decisão do E. Tribunal Regional Federal da 1a. Região, no julgamento do HC 2008.215770/MG, no sentido de que a ausência do réu na audiência de interrogatório - antes, é claro, da Lei 11.719/08 - ensejaria, não só a quebra de fiança ou a revogação da liberdade provisória, por não comparecimento a ato do processo, como também a decretação da prisão preventiva.

Com a devida vênia, se o interrogatorio é reconhecidamente meio de defesa, e, mais, se todo o acusado tem o direito ao silêncio, a imposição de quaisquer sanções ao exercidio do aludido direito, e incompatível com a dimensão constitucional da citada garantia.

A aplicação do princípio do dirito ao silêncio é ainda mais relevante, como se verá, nos procedimentos do Tribunal do Júri, em que vigora a regra da íntima convicção, pormeio da qual os jurados não tem o dever de motivar a sua decisão.

Ali, deve-se permitir, como estratégia da defesa, o não-comparecimento à sessão de julgamento, independentemente de se tratar de crime inafiançáve, como era previsto na antiga redação do art. 451, § 1°, CPP. No particular, aplausos à Lei 11.689/08, que deu nova redação ao art. 474 do CPP, permitindo ao acusado submetido ao Tribunal do Juri o não comparecimento aplicando-se lhe as mesmas disposições relativas aos procedimentos em geral (do interrogatório)".

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