sexta-feira, 5 de junho de 2009

O CÓDIGO DE PROCESSO PENAL*

Após a vigência das Ordenações do Reino de Portugal (do século XVI ao início do Século XIX), nossa primeira legislação codificada foi o Código de Processo Criminal de Primeira Instância, em 1832, merecendo registro também algumas disposições processuais previstas na Constituição Imperial de 1824, que lhe antecedeu. A tanto não retrocederemos, porém.

A perspectiva histórica que mais nos interessa, exatamente porque até hoje ainda nos alcança, situa-se em meados do século XX, mais precisamente no ano de 1941, com a vigência do nosso, ainda atual (quanto à vigência!), Código de Processo Penal.

Inspirado na legislação penal italiana produzida na década de 1930, em pleno regime fascista, o CPP brasileiro foi elaborado em bases notoriamente autoritárias, por razões óbvias e de origem. E nem poderia ser de outro modo, a julgar pelo paradigma escolhido e justificado, por escrito e expressamente, pelo responsável pelo projeto, Ministro Francisco Campos, conforme se observa em sua Exposição de Motivos.

Na redação primitiva do CPP, até mesmo a sentença absolutória não era suficiente para se restituir a liberdade do réu, dependendo do grau de apenação da infração penal (o antigo art. 596). Do mesmo modo, dependendo da pena abstratamente cominada ao fato, uma vez recebida a denúncia, era decretada, automaticamente, a prisão preventiva do acusado, como se realmente do culpado se tratasse (o antigo art. 312).

Aliás, é o que ocorre, hoje, com a legislação dos crimes resultantes de organizações criminosas (Lei 9.034/95), dos crimes de lavagem de dinheiro (Lei n. 9.613/98) e do Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10.826/03), a vedar a concessão de liberdade provisória.

Neste ponto, a registrar recente inovação (Lei n. 11.464/07, que, alterando o art. 2°, II, da Lei de Crimes hediondos - Lei n. 8.072/90) - passou a permitir a aplicação do art. 310, parágrafo único, do CPP (Liberdade Provisória sem fiança), limitando-se a vedar a concessão de fiança.

Logo veremos que o Supremo Tribunal Federal,parcialmente, é certo, vem cuidando de limitar determinados excessos legislativos, reconhecendo, enfim, a impossibilidade de se permitir ao legislador, a priori, ou seja, sem o exame de cada caso concreto, a restituição à liberdade daquele que foi preso em flagrante, embora venha sinalizando, também, que a previsão constitucional de inafiançabilidade para determinados delitos possa cumprir tal missão (a de vedação, em abstrato, da liberdade provisória). Nesse ponto, aludida jurisprudência procede.

O princípio fundamental que norteava o CPP era, como se percebe, o da presunção de culpabilidade. Manzini, penalista italiano que ainda goza de grande prestígio entre nós, ria-se daqueles que pregavam a presunção de inocência, apontando uma suposta inconsistência lógica no raciocínio, pois, dizia ele, como justificar a existência de uma ação penal contra quem seria presumivelmente inocente?

Evidentemente, a aludida dúvida somente pode ser explicada a partir de um pressuposto: o de que o fato da existência de uma acusação implicava juízo de antecipação de culpa, presunção de culpa, portanto, já que ninguém acusa quem é inocente.

Vindo de uma cultura de poder fascista e autoritário, como aquela do regime italiano da década de 1930, nada há a se estranhar. Mas a lamentar há muito. Sobretudo no Brasil, onde a onda policialesca do CPP produziu uma geração de juristas e de aplicadores do Direito que, ainda hoje, mostram alguma dificuldade em se desvencilhar das antigas amarras.

É claro que é - e sempre será - muito difícil compatibilizar interesses tão opostos como aqueles representados pela necessidade de aplicação da lei penal (enquanto ela existir) e o exercício da liberdade individual. Por isso é muito importante identificar as premissas teóricas da legislação de 1941, para reconhecer sua vigência, ou não, diante da ordem constitucional que lhe foi subsequente.

Não só porque uma seja, do ponto de vista normativo, hierarquicamente superior a outra, como ocorre entre a norma constitucional e a legislação ordinária, mas, sobretudo, porque com a identificação da realidade histórica em que foram produzidos os respectivos textos se poderá entender melhor as inúmeras incompatibilidades existentes entre ambos.


* Eugênio Pacelli de Oliveira, Curso de Processo Penal, 11a. edição, Lumen&Juris, 2009, p. 2 e v.

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